quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

PARENTALIDADE BIOLÓGICA NÃO É DESTINO


Persistentemente nós confundimos a capacidade de ser genitor com a parentalidade. A paternidade em si mesma não é um fato da natureza, mas um fato cultural*. O conceito de família, de infância e de paternidade que temos hoje foi construído culturalmente de longa data. Como nós nem sempre temos acesso ou interesse pela história da humanidade, acabamos por naturalizar e atemporalizar nossos conceitos, acreditando que sempre foi assim, o que também é reforçado por interesses políticos-sociais.
Mas não foi. O conceito de infância, por exemplo, apareceu na pedagogia do Iluminismo dos séculos XVII e XVIII**. E as reformas religiosas e humanistas a partir do século XVI também transformaram o conceito de família. Se anteriormente sua função era a conservação dos bens e a transmissão do nome da família, após a reforma, a família passa a ter uma conotação moral, espiritual, o que implicou numa mudança de sentimentos, afetos e na educação dos filhos. E mudanças ainda mais recentes nos anos 60 e 70, resultantes dos movimentos feministas, do desenvolvimento técnico-científico e da ênfase no projeto do indivíduo em detrimento do grupo social familiar, afirmaram a família fundamentalmente como grupo de afetividade e companheirismo, o que esvaziou mais ainda a parentalidade biológica.
Então, se a parentalidade não é natural dos seres humanos, ser pai e mãe não é algo instintivo, que nasce espontaneamente nos seres humanos. Mesmo que nossa cultura exalte essa idéia, especialmente na figura materna***. Para “adquirir” tal status, é necessário principalmente haver o desejo e a disponibilidade de aprender novas funções e formas de viver. Trata-se de um exercício de servir e amar, o que requer um grande investimento em vários sentidos: emocional-afetivo, de tempo, financeiro, etc.
Infelizmente nós ainda damos muita importância aos laços consanguíneos, mesmo quando as relações não são construídas ao longo do tempo e não há aquele investimento da parte dos pais. O problema é que temos a ilusão de que se uma pessoa “nasceu” para o papel naturalmente ela exercerá a função. O papel é a denominação que damos a cada posição na hierarquia familiar: avô, avó, pai, mãe, filho, filha, neto, neta. A função seria as características atribuídas para cada papel ser exercido da melhor maneira possível.
Dessa forma, vemos que muitas pessoas que possuem um determinado papel, nem sempre exercem a função daquele papel. Por exemplo, um pai que não cresceu emocionalmente pode continuar eternamente na função de filho. Uma filha por sua vez, pode “subir” na hierarquia e exercer uma função parental, cuidando de pais infantizados que não cresceram e até mesmo dos irmãos.
Já me deparei em diversas situações, profissionais e pessoais, onde os indivíduos, crianças ou adultos, ficam correndo atrás de pai e mãe biológicos, sempre com grandes expectativas de que um dia – quem sabe? – eles exerçam a função. Infelizmente essa busca é sempre ou quase sempre frustrante, uma vez que pais infantilizados estão emocionalmente comprometidos e não conseguem assumir todas as responsabilidades que o mundo adulto demanda.
Há também os modelos aprendidos na família. Muitas vezes a parentalidade é precária pois foi assim que se aprendeu a ser pai e mãe com as gerações passadas, ou seja, o próprio conceito de parentalidade é transmitido transgeracionalmente.
Por outro lado, também encontramos pais muito bem intencionados que apesar de buscarem exercer suas funções da melhor maneira que conseguem, “encontram” filhos que têm altas expectativas, e desejam outras atitudes dos pais. Isto é uma idealização construída pelos filhos – assim como também existem idealizações construídas pelos pais em relação aos seus filhos – que perpassa pelo não reconhecimento e aceitação da humanidade dos pais. Estes ficam paralisados na idealização, esperando eternamente que os pais sejam o que eles desejam; são filhos que não crescem.
Sair da paralisação da expectativa é fundamental. Mas por que muitas vezes preferimos ficar com nossas fantasias do que com a realidade? Porque ver a realidade pode ser difícil, doloroso e evidenciar o quanto fomos abandonados ou negligenciados, o quanto nossos pais são falhos. E também porque ao enxergarmos a realidade, necessariamente teremos que sair de posições vitimizadas, parando de culpabilizar o outro pelo que ele não deu conta, e assumir a responsabilidade por suprir nossas necessidades.
A escolha é de cada um...


 * VILLELA, João Baptista. Desbiologização da Paternidade. Revista da Faculdade de Direito da UFMG. BH, ano XXVII, n°21, maio de 1979.
** VALLADARES, Blanca. Revision teorica sobre los mitos da la maternidad. Revista Ciencias Sociales 65: 67-74, septiembre, 1994. Costa Rica 165p.
*** O questionamento da maternidade instintiva é amplamente discutido no livro de Elisabeth Badinter, “Um amor conquistado - o mito do amor materno”. Editora Nova Fronteira.