Há pouco tempo assisti um filme,
Bonecas Russas, com direção de Cédric Klapisch, uma continuidade dez anos
depois do filme Albergue Espanhol.
O termo Bonecas Russas advém de um
brinquedo tradicional da Rússia, a Matrioshka, feito de diversas bonecas, umas
colocadas dentro das outras, desde a maior e mais externa até a menor, mais
interna, a única que não é oca. Elas podem ser feitas de diversos materiais e pintadas
com diversas temáticas desde mulheres camponesas até líderes políticos.
Um dos significados tradicionais
associa as bonecas aos Sete Deuses da Fortuna – e neste caso elas são em número
de sete - simbolizando a família e a fertilidade, podendo ser chamadas de
bonecas da sorte.
Outro significado refere-se a
metáfora das múltiplas faces do ser humano, umas mais escondidas do que as
outras, algumas até mesmo profundamente desconhecidas.
Há também a metáfora das bonecas russas
como o processo de auto-conhecimento. Mesmo que sejamos velhos e sábios, sempre
haverá mais uma boneca russa a ser descoberta dentro de nós. A busca de si
mesmo é infinita e misteriosa.
Voltando ao filme Bonecas Russas, o
personagem Xavier, escritor e jornalista, se vê diante da tarefa de escrever
sobre e amor, mas como escrever algo que nunca viveu de forma duradoura e
verdadeira? Tal desafio o leva a uma série de questionamentos durante o filme e
a conclusão de que sua busca afetiva era como uma boneca russa, ele tinha a
ilusão de que se continuasse buscando, sou seja, tirando a boneca dentro da
boneca, encontraria uma parceira perfeita. Uma constante insatisfação do
desejo.
Aproveitando das bonecas russas como
metáforas sobre os relacionamentos, e das constantes reclamações que
encontramos na prática clínica terapêutica sobre a dificuldade de se encontrar
alguém disposto a se relacionar seriamente, podemos compreender o quanto hoje, uma quantidade
significativa de
relacionamentos não sai da primeira boneca russa. Os encontros relacionais são
superficiais e não há aprofundamento. Já no primeiro encontro cada pessoa julga
o outro como não adequado a minha busca, não dando nem a oportunidade de conhecê-lo.
Uma outra forma de
ficarmos paralisados na primeira boneca é dificuldade de se posicionar
coerentemente diante da transição cultural das relações de gênero, que vêm transformando
profundamente o conceito de ser homem e ser mulher. Ambos os lados estão
confusos sobre como devem se comportar e o que esperar do parceiro. E na grande
maioria das vezes os comportamentos “ditados” pela cultura são esperados e ao
mesmo tempo desqualificados.
Por
exemplo a rápida vivencia sexual dos parceiros, já no primeiro (ou primeiros)
encontro(s) é esperada e comum após a revolução sexual, mas pode gerar uma
consequente desqualificação do outro pois dentro do padrão social machista a
mulher que se “entrega” facilmente não é confiável para namorar. A cultura
machista também afeta negativamente o homem, pois é esperado que ele esteja
viril para todas as investidas de qualquer mulher, mesmo quando não há desejo,
para provar sua virilidade e masculinidade. Ainda é esperado, inclusive pela
mulher, que ele tome iniciativas sexuais logo no início, para comprovar que é
homem, mas se ele assim o faz, não está disponível para um relacionamento sério.
Assim, nesse jogo cultural masculino-feminino, criamos regras rígidas e
contraditórias e que restringem a vivência sexual e relacional.
Talvez também haja uma ilusão, uma
mistura de sexo com intimidade, o que de fato não ocorre.
Para construir intimidade é
necessário que abramos a primeira boneca russa para conhecer a seguinte, e a
seguinte e a seguinte. Não há como construir uma relação íntima sem que haja
esse aprofundamento. Numa sociedade ansiogênica como a nossa, há um
atropelamento, uma tentativa de chegar a última boneca sem passar pelas
anteriores e dessa forma ainda ficamos no nível superficial pois construção de
intimidade é processual.
Em seu livro “O Espírito da
Intimidade”, Sobonfu Somé se dedica a ensinar a ancestral sabedoria de sua
Tribo Dagara, da África Ocidental, e um dos itens dessa sabedoria é a
construção da intimidade. Me lembro de uma parte onde ela diz que os
relacionamentos ocidentais tendem a supervalorizar amor romântico, e que este
tipo de amor ignora todos os estágios de uma união espiritual – como eles
valorizam na tribo – não deixando espaço para aparecer a verdadeira identidade
das pessoas, estimulando o anonimato e forçando as pessoas a se mascararem. A
educação de sua aldeia valoriza o espírito e dessa forma o olhar de uns para os
outros é de amizade e irmandade e não como fontes de atração sexual. Segundo a
sabedoria dos anciãos, é necessário trabalhar de baixo para cima da colina, e
isto garante que os dois parceiros se compreendam e se conheçam a cada passo do
caminho. Cada um aprende o que machuca e o que alegra seu companheiro.
Mas a minha grande inquietação é: por
que tanto fugimos e tememos abrir nossas bonecas russas relacionais? Por que a
construção da intimidade se tornou um mito na sociedade ocidental? Por que nos
distanciamos tanto uns dos outros?
Sabemos que conhecer intimamente
alguém, seu lado luz e sombra, nos faz ter um “poder” que pode ser usado para
elevar ou para destruir o parceiro. Ter intimidade requer uma entrega e uma
confiança no outro, significa tornar-nos vulneráveis. Talvez tenhamos
construído defesas demais com medo de sermos abusados emocionalmente, e nos
fechamos para o aprofundamento. Ficar na superficialidade seria mais seguro.
Por outro lado, temos que avaliar nossos
principais modelos de intimidade transgeracionais: nossos pais e os demais
casais das nossas famílias. Muitas vezes esses modelos são pobres pois também
não conseguiram avançar na construção da intimidade. Então, temendo uma traição
consciente ou inconscientemente, ficamos leais a tais padrões relacionais.
Infelizes lealdades.
Por último gostaria de ressaltar a
minha profunda crença no quanto abrir nossas bonecas russas relacionais pode
ser gratificante. A relação de casal possui uma idiossincrasia, que nem as
relações familiares nem as de amizade possuem, que é a possibilidade de viver
diferentes níveis de intimidade simultaneamente: afetiva, sexual e espiritual. E
se permitirmos nos aventurar nesse caminho, poderemos ter um verdadeiro
encontro com o outro, e vivenciar uma conexão muito especial, que pode se
transformar numa experiência de crescimento mútuo.
Adriana Freitas