quinta-feira, 31 de maio de 2012

BONECAS RUSSAS



Há pouco tempo assisti um filme, Bonecas Russas, com direção de Cédric Klapisch, uma continuidade dez anos depois do filme Albergue Espanhol.
O termo Bonecas Russas advém de um brinquedo tradicional da Rússia, a Matrioshka, feito de diversas bonecas, umas colocadas dentro das outras, desde a maior e mais externa até a menor, mais interna, a única que não é oca. Elas podem ser feitas de diversos materiais e pintadas com diversas temáticas desde mulheres camponesas até líderes políticos.
Um dos significados tradicionais associa as bonecas aos Sete Deuses da Fortuna – e neste caso elas são em número de sete - simbolizando a família e a fertilidade, podendo ser chamadas de bonecas da sorte.
Outro significado refere-se a metáfora das múltiplas faces do ser humano, umas mais escondidas do que as outras, algumas até mesmo profundamente desconhecidas.
Há também a metáfora das bonecas russas como o processo de auto-conhecimento. Mesmo que sejamos velhos e sábios, sempre haverá mais uma boneca russa a ser descoberta dentro de nós. A busca de si mesmo é infinita e misteriosa.
Voltando ao filme Bonecas Russas, o personagem Xavier, escritor e jornalista, se vê diante da tarefa de escrever sobre e amor, mas como escrever algo que nunca viveu de forma duradoura e verdadeira? Tal desafio o leva a uma série de questionamentos durante o filme e a conclusão de que sua busca afetiva era como uma boneca russa, ele tinha a ilusão de que se continuasse buscando, sou seja, tirando a boneca dentro da boneca, encontraria uma parceira perfeita. Uma constante insatisfação do desejo.
Aproveitando das bonecas russas como metáforas sobre os relacionamentos, e das constantes reclamações que encontramos na prática clínica terapêutica sobre a dificuldade de se encontrar alguém disposto a se relacionar seriamente, podemos compreender o quanto hoje, uma quantidade significativa de relacionamentos não sai da primeira boneca russa. Os encontros relacionais são superficiais e não há aprofundamento. Já no primeiro encontro cada pessoa julga o outro como não adequado a minha busca, não dando nem a oportunidade de conhecê-lo.
Uma outra forma de ficarmos paralisados na primeira boneca é dificuldade de se posicionar coerentemente diante da transição cultural das relações de gênero, que vêm transformando profundamente o conceito de ser homem e ser mulher. Ambos os lados estão confusos sobre como devem se comportar e o que esperar do parceiro. E na grande maioria das vezes os comportamentos “ditados” pela cultura são esperados e ao mesmo tempo desqualificados.
Por exemplo a rápida vivencia sexual dos parceiros, já no primeiro (ou primeiros) encontro(s) é esperada e comum após a revolução sexual, mas pode gerar uma consequente desqualificação do outro pois dentro do padrão social machista a mulher que se “entrega” facilmente não é confiável para namorar. A cultura machista também afeta negativamente o homem, pois é esperado que ele esteja viril para todas as investidas de qualquer mulher, mesmo quando não há desejo, para provar sua virilidade e masculinidade. Ainda é esperado, inclusive pela mulher, que ele tome iniciativas sexuais logo no início, para comprovar que é homem, mas se ele assim o faz, não está disponível para um relacionamento sério. Assim, nesse jogo cultural masculino-feminino, criamos regras rígidas e contraditórias e que restringem a vivência sexual e relacional.
Talvez também haja uma ilusão, uma mistura de sexo com intimidade, o que de fato não ocorre.
Para construir intimidade é necessário que abramos a primeira boneca russa para conhecer a seguinte, e a seguinte e a seguinte. Não há como construir uma relação íntima sem que haja esse aprofundamento. Numa sociedade ansiogênica como a nossa, há um atropelamento, uma tentativa de chegar a última boneca sem passar pelas anteriores e dessa forma ainda ficamos no nível superficial pois construção de intimidade é processual.
Em seu livro “O Espírito da Intimidade”, Sobonfu Somé se dedica a ensinar a ancestral sabedoria de sua Tribo Dagara, da África Ocidental, e um dos itens dessa sabedoria é a construção da intimidade. Me lembro de uma parte onde ela diz que os relacionamentos ocidentais tendem a supervalorizar amor romântico, e que este tipo de amor ignora todos os estágios de uma união espiritual – como eles valorizam na tribo – não deixando espaço para aparecer a verdadeira identidade das pessoas, estimulando o anonimato e forçando as pessoas a se mascararem. A educação de sua aldeia valoriza o espírito e dessa forma o olhar de uns para os outros é de amizade e irmandade e não como fontes de atração sexual. Segundo a sabedoria dos anciãos, é necessário trabalhar de baixo para cima da colina, e isto garante que os dois parceiros se compreendam e se conheçam a cada passo do caminho. Cada um aprende o que machuca e o que alegra seu companheiro.
Mas a minha grande inquietação é: por que tanto fugimos e tememos abrir nossas bonecas russas relacionais? Por que a construção da intimidade se tornou um mito na sociedade ocidental? Por que nos distanciamos tanto uns dos outros?
Sabemos que conhecer intimamente alguém, seu lado luz e sombra, nos faz ter um “poder” que pode ser usado para elevar ou para destruir o parceiro. Ter intimidade requer uma entrega e uma confiança no outro, significa tornar-nos vulneráveis. Talvez tenhamos construído defesas demais com medo de sermos abusados emocionalmente, e nos fechamos para o aprofundamento. Ficar na superficialidade seria mais seguro.
Por outro lado, temos que avaliar nossos principais modelos de intimidade transgeracionais: nossos pais e os demais casais das nossas famílias. Muitas vezes esses modelos são pobres pois também não conseguiram avançar na construção da intimidade. Então, temendo uma traição consciente ou inconscientemente, ficamos leais a tais padrões relacionais. Infelizes lealdades.
Por último gostaria de ressaltar a minha profunda crença no quanto abrir nossas bonecas russas relacionais pode ser gratificante. A relação de casal possui uma idiossincrasia, que nem as relações familiares nem as de amizade possuem, que é a possibilidade de viver diferentes níveis de intimidade simultaneamente: afetiva, sexual e espiritual. E se permitirmos nos aventurar nesse caminho, poderemos ter um verdadeiro encontro com o outro, e vivenciar uma conexão muito especial, que pode se transformar numa experiência de crescimento mútuo.
Adriana Freitas

sexta-feira, 4 de maio de 2012

EU QUERIA MORAR NUM JARDIM



Ah como eu queria morar num jardim!
Amanhecer com as gotas de orvalho me refrescando
Ou receber a chuva alegremente molhando minhas folhas
E dançar saltitantemente ao vento
Sobre a terra onde moro

Ah como eu queria ser uma flor no meio do jardim!
Recebendo os beijos amorosos das abelhas e dos insetos
Sendo admirada pela minha beleza e perfume
Estando feliz apenas por desabrochar

Ah como eu queria morar num jardim!
Ter sua calma e tranquilidade
Viver apenas, sem ansiedade
Sem vãs preocupações mundanas
Sem minhas loucas aflições humanas afetivas

O jardim é simplesmente um jardim
Lá seus moradores estão facilmente felizes pelo que são
Não querem ser nada mais do que terra, plantas e animaizinhos
Sem anseios, sem ambições, sem inquietações...

No jardim o crescimento é lento e ninguém reclama disso
Visitantes são recebidos e não há tristeza nas despedidas
Não há expectativas de vindas nem de idas
Tudo é vivido com harmonia e gratidão

Ah como eu queria morar num jardim!
Mas pra falar bem a verdade
Peço aos céus essa dádiva
De pelo menos ter o espírito do jardim
Morando dentro de mim!



Adriana Freitas