segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Mensagem de Fim de Ano - De Sementes e Jardinagem



A jardinagem pode ser considerada a arte de criar espaços naturais e de fazer a manutenção de plantas com o objetivo de embelezar determinados locais públicos ou privados. Para quem gosta, acompanhar o processo da planta desde a plantação da semente até a chegada das flores ou a colheita dos frutos, é um grande prazer.
Se observarmos de perto esta arte, poderemos abstrair algumas metáforas da vida humana. Vejamos:
A escolha das sementes para o plantio deve ser criteriosa. Elas devem possuir uma boa genética e ser livres de pragas e doenças. Sementes fracas e doentes são certeza de insucesso. Infelizmente nem sempre escolhemos boas sementes para o plantio das nossas relações. Encontramos “sementes doentes” mas negamos, fechamos nossos olhos – pois nossa carência está gritando mais alto do que o nosso amor próprio - e plantamos assim mesmo. Com a ilusão de que se cuidarmos muito bem, a planta vai mudar sua natureza e crescer sem doença. Só veremos o resultado lá na frente, com plantações que não rendem todo o potencial que poderiam render se nossas sementes escolhidas fossem saudáveis.
Escolher o local e as condições da plantação é também uma etapa importante. Pode ser necessário preparar a terra para receber as sementes. Cada planta tem sua própria necessidade. Precisamos conhecê-la para saber qual ambiente e qual estação do ano são melhores para seu plantio. Se as condições do plantio não condizem com a estrutura da planta, a morte é certa. É no mínimo tolice querer exigir da planta que ela se adapte a ambientes inadequados para sua estrutura. A planta não vai responder ao seu desejo e sim o contrário.
Partindo dessa idéia, uma das características do plantio das sementes é que as mesmas não podem ser aterradas muito próximas umas das outras, pois isso pode prejudicar o crescimento da planta. Plantas e humanos precisam de espaço para se desenvolver. Alguns pais “plantam” seus filhos tão próximos de si mesmos, de forma que suas raízes acabam ficando muito emaranhadas, os filhos não crescem o suficiente e acabam ficando sobre suas sombras... Isso também acontece com casais que ainda acreditam que duas plantas devem tornar-se uma só.
A profundidade da plantação também deve ser regulada de acordo com recomendação ideal para cada semente. Algumas precisam de sol para germinar, então devem ser colocadas sobre a terra sem serem cobertas. Outras, se plantadas muito fundas podem não conseguir subir a superfície e morrer. Há ainda as que se plantadas muito rasas podem gerar plantas fracas que tombam facilmente. Penso que também o início das relações amorosas deveria ser assim: nem plantado profundamente, nem no raso. Na primeira opção, vemos pessoas que pulam de cabeça, em relações extremamente projetivas, onde cada um espera do outro a salvação para suas misérias, o príncipe ou a princesa encantados, e acabam “morrendo”, frustrados ou provavelmente sufocados. Na segunda opção, ficar na superficialidade, também é inadequado para a “semente relacional”, pois não desenvolve raízes saudáveis e fortes o suficiente para manter uma boa base que não tombe com a primeira ventania de mudança de clima.
A rega dos primeiros dias da semeadura deve ser farta e com lâminas bem finas de água, nunca jogando jatos de água. Talvez um borrifador seja a forma mais delicada de rega. Este tipo de cuidado dá mais trabalho, mas compensa pelos bons resultados. A rega das relações também precisa ser farta, delicada e frequente. Algumas pessoas têm uma ilusão comum de que a relação pode crescer sem essa dedicação. Amarga (des)ilusão.
As plantas também precisam do calor do sol para sua germinação e crescimento, não de forma direta senão elas podem se queimar, mas de forma indireta. Ou um local próximo da iluminação solar ou uma estufa devidamente fechada com tela, são os ambientes climatizados ideais. As relações também precisam do calor, e o sol aqui pode ser representado pelo calor do afeto, do amor. Calor demais pode ser paixão, expectativa ou dependência demais e não amor.
Além das relações, os sonhos e os desejos também são como as plantas.
Muitas vezes tentamos plantar um sonho e um desejo num local completamente inadequado para seu crescimento. Existem ambientes que não são suficientemente férteis, ou não querem este tipo de planta que queremos plantar, pois já estão acostumados com um jardim antigo, ou seco.
Outras vezes queremos trazer algumas plantas para nosso jardim ou quintal, mas sua estrutura não condiz com nosso ambiente. Se forçarmos a barra e insistirmos nessa plantação, podem acontecer duas coisas: ou a planta morre ou nosso jardim ficará feio ou seco. Em ambos casos, ficamos frustrados, com raiva, magoados e até mesmo cegos, podendo escolher tolerar – que não significa aceitar - o jardim em tais condições a vida toda. Ou podemos, quem sabe, despertar nossos olhos de sua cegueira, e mudá-lo, escolhendo outras sementes e plantas afins.
Nessa nossa sociedade apressada e ansiosa, nem sempre temos a paciência de acompanhar o processo de crescimento da planta. Queremos ir direto para os frutos. Esquecemos que o tempo é um fator essencial. É impossível colher flores ou frutos maduros dos nossos sonhos e desejos sem passar por todas as etapas. Só poderíamos colher botões de flores, e frutos ainda imaturos, não prontos para consumo ou com sabor de fruta verde.
A beleza e a magia estão em cada etapa do crescimento da planta, desde a germinação, o nascimento das folhas, seu crescimento, a chegada das flores e dos frutos e então o recomeço de um novo ciclo. Que possamos escolher admirar e festejar todos esses momentos com alegria.
Desejo, neste Natal e em 2013, que você possa despertar, aprender ou continuar praticando a arte de jardinagem da sua própria vida, e que o seu jardim continue sendo ou se torne uma fonte de muita beleza e prazer para si e para os seus!
Afetuosamente
Adriana Freitas

sábado, 3 de novembro de 2012

TRINTA E TRÊS – AMOR PELO ESTAR SOZINHA




No mês de outubro comemoro meu aniversário, que este ano de 2012 foi de trinta e três anos. Eu sempre gostei de aniversários, acho que minha mãe teve influência nisso, pois durante a infância ela sempre fazia uma festinha, por mais simples que fosse. O fato é que eu cresci apreciando muito esta data, e hoje perpetuo o ritual da comemoração.
Pensando nisto, decidi fazer uma viagem para Tiradentes - MG no dia do aniversário, buscando fazer um ritual diferente dos anteriores. Passei em São João Del Rey, almocei na casa de um amigo com seus amigos e mais tarde dois deles me levaram para meu destino principal.
Depois que eles foram embora e eu fiquei sozinha, fui passear na cidade e pensar na minha vida. Eu costumo aproveitar o meu dia para refletir sobre o ano que passou e planejar o ano que se inicia.
Visitei uma loja de cristais e colchas maravilhosos. Lá tomei um café expresso com pão de queijo, num ambiente extremamente agradável: um quintal atrás da loja, onde havia algumas mesas e cadeiras debaixo de um toldo e em seguida a grama, árvores, mais outro local para sentar debaixo de algo parecido com um quiosque. E para completar o quadro, havia uma chuvinha e um friozinho deliciosos. Foi muito prazeroso simplesmente estar ali sentada, sem pressa, sem ansiedade, sentindo na pele o clima, ouvindo o barulho da chuva, sentindo o seu cheiro. Parecia que todos os meus sentidos estavam aguçados, inteiramente presentes e vivos.
Após esta experiência, caminhei de volta pra pousada e me preparei para ir jantar. Decidi passear pela rua onde se localizavam os restaurantes e escolher o local ideal para aquela noite, usando novamente meus sentidos. Eu tenho tentado prestar bastante atenção na minha intuição, minha companheira sempre acessível, disponível e sábia, moradora do meu eu mais profundo. E assim o foi. Ao passar por um restaurante com uma musiquinha ambiente eu senti que aquele era o melhor lugar. Ao chegar mais próximo, vi que teria também música ao vivo.
A vida é muito mágica, nós temos uma conexão profunda com o universo e não fazemos a mínima idéia disso. Os músicos sentaram e a primeira música que tocaram foi parabéns pra você! Havia outra aniversariante lá, e durante a noite eles cantaram três vezes a música parabéns. Eu fiquei emocionada ao ouvi-los cantar e pensar em como minha intuição me levou para o lugar certo.
Continuei refletindo sobre as vivências do ano trinta e dois e pensando o que desejava para os trinta e três, meus sonhos e projetos. O saldo passado foi extremamente positivo e projetos valiosos estão em aberto.
Mas o que mais me marcou daquele dia foi o quanto eu gostei da experiência de viver aqueles momentos comigo mesma, sem nenhum conhecido ou amigo por perto. Geralmente as pessoas têm muito medo da solidão e sofrem quando estão sozinhas. Talvez eu simplesmente seja diferente ou talvez eu tenha vivido a solidão de uma forma mais positiva, ou talvez eu tenha aprendido a gostar da minha companhia na medida em que passei a ser mais coerente, buscando sintonizar pensamento, sentimento e ação.
O fato é que eu estava numa presença amorosa comigo mesma durante todo o tempo. A solidão pode ser muito prazerosa tanto quanto o estar acompanhado, desde que o amor esteja na parte de dentro. Infelizmente buscamos o amor do lado de fora o tempo todo. Esperamos que o outro seja uma fonte de amor para nos alimentar. Não pensamos, não sabemos ou não lembramos que a fonte já existe em nós e assim vivemos uma busca ilusória.
Acho que o grande ganho pra mim ao fazer essa viagem de aniversário foi reencontrar e reconectar com a minha fonte amorosa interna e poder viver o prazer e o amor pelo estar sozinha.
Adriana Freitas

sábado, 25 de agosto de 2012

MOMENTOS ETERNIZÁVEIS


Quem nunca desejou eternizar um momento? Quem nunca quis permanecer naquele momento prazeroso por toda a vida? Que o show nunca terminasse, que o dia nunca acabasse, que o abraço e o beijo nunca se desfizessem... Quando vivemos um grande prazer com uma grande entrega fica realmente muito difícil terminá-lo, considerá-lo findo...
Senti esse desejo recentemente três vezes.
Uma, quando estava assistindo um show de jazz no Savassi Festival em Belo Horizonte, no final de julho. O trio - Shai Maestro Trio - era composto por um pianista, um baterista e um contrabaixista, sendo os primeiros de origem israelense e o terceiro de origem peruana, mas vivendo nos Estados Unidos. Além de toda beleza das músicas, a integração dos músicos no palco era de uma sintonia amorosa maravilhosa. O prazer em assisti-los era imenso. Eu não queria que o show acabasse! Ao final, ainda em êxtase, fui comprar o cd deles e em casa, ao ouvi-lo não tinha mais a mesma magia. A magia residiu no contato vivo entre nós. E é exatamente esta sensação que eu desejei eternizar...
O segundo momento eternizável, aconteceu numa casa de rock que gosto de ir assistir aos shows, também num final de semana de julho. Conheci um homem e senti algo diferente por ele. A princípio não havia nada de muito incomum: a conversa era boa, o abraço afetuoso e o beijo muito gostoso, e ele, sendo do estado de São Paulo, partiria de volta no dia seguinte. Mas acredito que o verdadeiro diferencial foi que nosso – ou pelo menos o meu - contato foi de uma entrega muito grande ao momento. E ao final, foi muito difícil a separação. O pessoal da casa praticamente nos convidou para pagar a conta e de quebra ir embora – “pelo amor de deus!” rs. Sintonias como esta são raras pra mim e quando elas acontecem, com certeza dá vontade de eternizá-las. Que a noite nunca acabe, que os corpos permaneçam entrelaçados e que o prazer se prolongue infinitamente!
E o terceiro “momento” durou um dia inteiro; eu não queria que aquele dia terminasse! Foi uma viagem que fiz no início de agosto para Ouro Preto – MG, acompanhada de um querido amigo, que se tornou meu guia turístico, já que foi minha primeira visita a cidade. Passeamos por alguns dos principais pontos turísticos. O dia foi perfeito, tudo deu certo. A cidade é muito bonita, com uma riqueza cultural que me agregou alguns valores e emoções, a gastronomia uma delícia, enfim, vivi uma experiência eternizável.
Mas infelizmente as coisas se findam e só nos resta o sabor da memória. Bom aqui relembrar o Drummond:
Memória

Amar o perdido
deixa confundido
este coração.

Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.

As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão

Mas as coisas findas
muito mais que lindas,
essas ficarão.
Mas as coisas findas só ficarão quando tivermos uma memória saudável. A memória “serve a dois senhores” podendo ser tanto uma dádiva como também uma maldição. Para as memórias traumáticas não elaboradas, pode tornar-se um sofrimento sem igual. Para as memórias eternizáveis é fundamental.
Imaginem se não pudéssemos relembrar os bons momentos? O filme “Como se fosse a primeira vez!”, dirigido por Peter Segal, mostra bem claro este drama. A personagem Lucy Whitmore tem um problema de memória e no dia seguinte não se lembra de nada do dia anterior e o outro personagem Henry Roth, que se apaixonou por ela, tem que conquistá-la todos os dias. Relembrem também das pessoas que sofrem de demências ou Alzheimer? Será que elas sentem a angústia da falta de memória ou será que a angústia é nossa, de quem olha de fora? Ou será que inconscientemente essas pessoas desejaram esquecer suas vidas porque elas eram tão miseráveis que não valiam a pena serem lembradas? Ou ainda, se desejavam desesperadamente esquecer traumas muito profundos e dolorosos?
Por outro lado, imaginem se realmente pudéssemos eternizar o momento...  Reviver uma vez, outra e outra a mesma experiência. Não estaríamos paralisando as nossas vidas? Não restringiríamos nossas vidas a apenas um prazer sendo que poderíamos descobrir milhões de outros? Tal prazer não perderia seu caráter prazeroso pela repetição?
O fato é que muito provavelmente só aproveitemos ao máximo os prazeres que temos - quando temos ou nos damos permissão de aproveitá-los - porque eles são extremamente fugazes. E talvez o prazer só seja prazer por ser efêmero, e no momento seguinte nos escapa a mão. Quem sabe se é só assim que aprendemos a dar valor ao momento presente?
Pelo menos nos resta um consolo: já que não podemos ou não gostaríamos de pagar o preço de eternizar os momentos, podemos revisitar as conhecidas experiências prazerosas de vez em quando, seja através da memória, seja pessoalmente numa nova aventura. Mesmo que seja impossível “banhar-se no mesmo rio duas vezes”*, ainda assim vale a pena voltar ao rio em outras estações.
Adriana Freitas

* Referência a famosa frase de Heráclito de Éfeso.


sexta-feira, 20 de julho de 2012

ENVELHECER, ENVELHE-SER


Não entendo isso dos anos: que, todavia, é bom vivê-los, mas não tê-los."

Envelhecer, verbo intransitivo: tornar-se velho, parecer velho. Verbo transitivo: tornar velho. Mas na vivência real, “verbo” imperativo.
Estou com trinta e dois anos e adoro fazer e comemorar aniversário. Nunca foi um problema pra mim contar minha idade pois eu sempre gostei de ficar mais velha. Eu sempre dizia: um ano a mais de vida.
Controversamente a todo esse sentimento, ao me deparar este ano com as primeiras (ou as primeiras que meus olhos quiseram enxergar) linhas de expressão no meu rosto - claro que foi inventado um nome mais bonito que rugas, para amenizar a questão -, imediatamente me chegou o impacto: estou envelhecendo... Confesso que fiquei “baqueada”, incomodada, talvez triste, como nunca imaginei que ficaria já que gosto de envelhecer, ou pelo menos achava que gostava.
Comecei a questionar o por quê deste sentimento e a primeira idéia que me veio a mente foi a expectativa social que existe sobre nós mulheres, uma demanda de que estejamos e sejamos sempre bonitas, inteiras. Não é difícil de pensar estatisticamente quem são as maiores clientes das clínicas de cirurgia plástica e quem são as maiores consumidoras de produtos de beleza e produtos anti-idade, anti-sinais. Mesmo que sejamos pessoas conscientes dessas expectativas e que não sejamos adeptas da escravidão aos estereótipos sociais, sofremos uma forte influência dos mesmos em nossas vidas, muito mais do que podemos perceber.
Não ser adepto ao estereótipo também não significa dever abandonar a si mesmo a própria sorte. É visível a necessidade de cuidarmos bem de nós mesmos para envelhecermos com qualidade. Cuidar da alimentação, cuidar do corpo e da alma, ou seja, ser responsável por cuidar de todos os aspectos da própria vida.
Porém, antes de podermos escolher como queremos envelhecer precisamos aceitar a fatalidade do envelhecimento. Negá-la ou ficar obcecada por ela são dois lados de uma mesma moeda de negligência ao próprio self.
Eliane Brum*, jornalista, escritora e documentarista, comentando sobre o filme “Branca de neve e o caçador” dirigido por Rupert Sanders, ressalta que a obra, olhando a perspectiva da rainha má, é um conto de fadas para mulheres adultas. Obcecada por não envelhecer, a vilã rouba a beleza e juventude das adolescentes, com crueldade. No filme, a justificativa passa pelas decepções amorosas, no entanto, sua vida continua tão miserável quanto antes, pois na tentativa de não sentir ela também deixa de viver e de ter um verdadeiro encontro com o outro.
Mulheres como a rainha má ficam demasiadamente enfocadas em sua própria inveja sobre o que as outras têm e esquecem de desenvolver o próprio potencial. O foco fica no outro e não em si mesmas. Dessa forma, a vida passa sem ser sentida.
Outra questão importante que fica bem escondida detrás do incômodo pelo envelhecer é o enfrentamento cara a cara com a própria finitude. Morte: fim da vida, não ter mais oportunidades para realizar os sonhos e projetos que tínhamos planejado.
Mas talvez tão ruim ou pior que a “morte morrida”, é a morte em vida. Estar vivo-morto é um jeito auto-boicotador que encontramos para não sairmos das lealdades invisíveis aos nossos padrões familiares. Lealdades podem se tornar gaiolas com portas fechadas. Mesmo num descuido do dono, se a porta fica aberta, o passarinho não aprendeu a voar e acha muito arriscada a vida lá fora, prefere voltar para dentro da gaiola**. Estar vivo-morto é não ter a coragem de SER o que gostaríamos, de viver nosso desejo, é não se permitir abandonar a gaiola, mesmo quando não mais nos identificamos com ela.
No filme “Ao entardecer” dirigido por Lajos Koltai, a protagonista Ann Lord, já doente e acamada, relembra momentos de seu passado, incomodada pelo que deixou de viver há cinquenta anos atrás. Chegar ao final da vida e se deparar com sua vida não vivida*** e lamentar por não ter aproveitado certas oportunidades, é no mínimo muito triste. Numa perspectiva mais positiva, escolher conscientemente nos faz aceitar melhor nossa vida não vivida. Escolher inconscientemente nos deixa a sensação de eterna falta e débito com o não vivido.
Para não chegarmos a tal ponto, precisamos investir no nosso processo de envelhe-SER. Este investimento requer busca de coerência entre pensamento, sentimento e ação, ou seja, agir conforme sentimos e pensamos. Esta coerência alimenta nossa auto-estima e por consequência gostamos mais de nós mesmos, fazendo assim com que envelheçamos saudavelmente.
De fato eu gosto de envelhecer porque quanto mais vivo, mais vou aprendendo com a vida. Quanto mais vivências tenho, mais vou experimentando a arte de me tornar cada vez mais coerente comigo mesma, com meus valores, com minha ética.
As rugas no nosso rosto são sinais dos sorrisos que sorrimos e também são marcas das lágrimas que choramos. São as marcas do vivido. Nosso corpo é marcado o tempo todo pelas nossas vivências. Querer impedir que elas apareçam é pedir para a vida parar. Por mais incômodo que seja ver nosso corpo envelhecendo é ainda preferível enxergar nele as marcas da vida a deixar de viver...

Adriana Freitas
** Conferir: “O passarinho engaiolado” de Rubem Alves, Paulus Editora.
*** Conferir: “Viver a vida não vivida” de Robert A. Johnson e Jerry M. Ruhl, Editora Vozes.

quinta-feira, 31 de maio de 2012

BONECAS RUSSAS



Há pouco tempo assisti um filme, Bonecas Russas, com direção de Cédric Klapisch, uma continuidade dez anos depois do filme Albergue Espanhol.
O termo Bonecas Russas advém de um brinquedo tradicional da Rússia, a Matrioshka, feito de diversas bonecas, umas colocadas dentro das outras, desde a maior e mais externa até a menor, mais interna, a única que não é oca. Elas podem ser feitas de diversos materiais e pintadas com diversas temáticas desde mulheres camponesas até líderes políticos.
Um dos significados tradicionais associa as bonecas aos Sete Deuses da Fortuna – e neste caso elas são em número de sete - simbolizando a família e a fertilidade, podendo ser chamadas de bonecas da sorte.
Outro significado refere-se a metáfora das múltiplas faces do ser humano, umas mais escondidas do que as outras, algumas até mesmo profundamente desconhecidas.
Há também a metáfora das bonecas russas como o processo de auto-conhecimento. Mesmo que sejamos velhos e sábios, sempre haverá mais uma boneca russa a ser descoberta dentro de nós. A busca de si mesmo é infinita e misteriosa.
Voltando ao filme Bonecas Russas, o personagem Xavier, escritor e jornalista, se vê diante da tarefa de escrever sobre e amor, mas como escrever algo que nunca viveu de forma duradoura e verdadeira? Tal desafio o leva a uma série de questionamentos durante o filme e a conclusão de que sua busca afetiva era como uma boneca russa, ele tinha a ilusão de que se continuasse buscando, sou seja, tirando a boneca dentro da boneca, encontraria uma parceira perfeita. Uma constante insatisfação do desejo.
Aproveitando das bonecas russas como metáforas sobre os relacionamentos, e das constantes reclamações que encontramos na prática clínica terapêutica sobre a dificuldade de se encontrar alguém disposto a se relacionar seriamente, podemos compreender o quanto hoje, uma quantidade significativa de relacionamentos não sai da primeira boneca russa. Os encontros relacionais são superficiais e não há aprofundamento. Já no primeiro encontro cada pessoa julga o outro como não adequado a minha busca, não dando nem a oportunidade de conhecê-lo.
Uma outra forma de ficarmos paralisados na primeira boneca é dificuldade de se posicionar coerentemente diante da transição cultural das relações de gênero, que vêm transformando profundamente o conceito de ser homem e ser mulher. Ambos os lados estão confusos sobre como devem se comportar e o que esperar do parceiro. E na grande maioria das vezes os comportamentos “ditados” pela cultura são esperados e ao mesmo tempo desqualificados.
Por exemplo a rápida vivencia sexual dos parceiros, já no primeiro (ou primeiros) encontro(s) é esperada e comum após a revolução sexual, mas pode gerar uma consequente desqualificação do outro pois dentro do padrão social machista a mulher que se “entrega” facilmente não é confiável para namorar. A cultura machista também afeta negativamente o homem, pois é esperado que ele esteja viril para todas as investidas de qualquer mulher, mesmo quando não há desejo, para provar sua virilidade e masculinidade. Ainda é esperado, inclusive pela mulher, que ele tome iniciativas sexuais logo no início, para comprovar que é homem, mas se ele assim o faz, não está disponível para um relacionamento sério. Assim, nesse jogo cultural masculino-feminino, criamos regras rígidas e contraditórias e que restringem a vivência sexual e relacional.
Talvez também haja uma ilusão, uma mistura de sexo com intimidade, o que de fato não ocorre.
Para construir intimidade é necessário que abramos a primeira boneca russa para conhecer a seguinte, e a seguinte e a seguinte. Não há como construir uma relação íntima sem que haja esse aprofundamento. Numa sociedade ansiogênica como a nossa, há um atropelamento, uma tentativa de chegar a última boneca sem passar pelas anteriores e dessa forma ainda ficamos no nível superficial pois construção de intimidade é processual.
Em seu livro “O Espírito da Intimidade”, Sobonfu Somé se dedica a ensinar a ancestral sabedoria de sua Tribo Dagara, da África Ocidental, e um dos itens dessa sabedoria é a construção da intimidade. Me lembro de uma parte onde ela diz que os relacionamentos ocidentais tendem a supervalorizar amor romântico, e que este tipo de amor ignora todos os estágios de uma união espiritual – como eles valorizam na tribo – não deixando espaço para aparecer a verdadeira identidade das pessoas, estimulando o anonimato e forçando as pessoas a se mascararem. A educação de sua aldeia valoriza o espírito e dessa forma o olhar de uns para os outros é de amizade e irmandade e não como fontes de atração sexual. Segundo a sabedoria dos anciãos, é necessário trabalhar de baixo para cima da colina, e isto garante que os dois parceiros se compreendam e se conheçam a cada passo do caminho. Cada um aprende o que machuca e o que alegra seu companheiro.
Mas a minha grande inquietação é: por que tanto fugimos e tememos abrir nossas bonecas russas relacionais? Por que a construção da intimidade se tornou um mito na sociedade ocidental? Por que nos distanciamos tanto uns dos outros?
Sabemos que conhecer intimamente alguém, seu lado luz e sombra, nos faz ter um “poder” que pode ser usado para elevar ou para destruir o parceiro. Ter intimidade requer uma entrega e uma confiança no outro, significa tornar-nos vulneráveis. Talvez tenhamos construído defesas demais com medo de sermos abusados emocionalmente, e nos fechamos para o aprofundamento. Ficar na superficialidade seria mais seguro.
Por outro lado, temos que avaliar nossos principais modelos de intimidade transgeracionais: nossos pais e os demais casais das nossas famílias. Muitas vezes esses modelos são pobres pois também não conseguiram avançar na construção da intimidade. Então, temendo uma traição consciente ou inconscientemente, ficamos leais a tais padrões relacionais. Infelizes lealdades.
Por último gostaria de ressaltar a minha profunda crença no quanto abrir nossas bonecas russas relacionais pode ser gratificante. A relação de casal possui uma idiossincrasia, que nem as relações familiares nem as de amizade possuem, que é a possibilidade de viver diferentes níveis de intimidade simultaneamente: afetiva, sexual e espiritual. E se permitirmos nos aventurar nesse caminho, poderemos ter um verdadeiro encontro com o outro, e vivenciar uma conexão muito especial, que pode se transformar numa experiência de crescimento mútuo.
Adriana Freitas

sexta-feira, 4 de maio de 2012

EU QUERIA MORAR NUM JARDIM



Ah como eu queria morar num jardim!
Amanhecer com as gotas de orvalho me refrescando
Ou receber a chuva alegremente molhando minhas folhas
E dançar saltitantemente ao vento
Sobre a terra onde moro

Ah como eu queria ser uma flor no meio do jardim!
Recebendo os beijos amorosos das abelhas e dos insetos
Sendo admirada pela minha beleza e perfume
Estando feliz apenas por desabrochar

Ah como eu queria morar num jardim!
Ter sua calma e tranquilidade
Viver apenas, sem ansiedade
Sem vãs preocupações mundanas
Sem minhas loucas aflições humanas afetivas

O jardim é simplesmente um jardim
Lá seus moradores estão facilmente felizes pelo que são
Não querem ser nada mais do que terra, plantas e animaizinhos
Sem anseios, sem ambições, sem inquietações...

No jardim o crescimento é lento e ninguém reclama disso
Visitantes são recebidos e não há tristeza nas despedidas
Não há expectativas de vindas nem de idas
Tudo é vivido com harmonia e gratidão

Ah como eu queria morar num jardim!
Mas pra falar bem a verdade
Peço aos céus essa dádiva
De pelo menos ter o espírito do jardim
Morando dentro de mim!



Adriana Freitas

segunda-feira, 30 de abril de 2012

PROCURA-SE UM EMPREGO...


Atualmente tenho visto diversos anúncios com ofertas de emprego, nas portas das mais diversas áreas comerciais. Há muitas empresas passando necessidade de funcionários e tendo que aceitar pessoas que nem sempre estão preparadas para aquele perfil de trabalho, por falta de candidatos. Constatamos uma nova realidade no Brasil onde não falta emprego de até nível médio, assalariado e falta sim pessoas disponíveis para o trabalho.
Já a realidade para os profissionais graduados no Ensino Superior é um pouco diferente. Realmente o mercado de trabalho está inflado, não conseguindo absorver a grande quantidade de profissionais lançados, especialmente porque o acesso as faculdades ficou muito maior, com os diversos incentivos governamentais, com o aumento do número de faculdades e consequentemente com a competição financeira entre elas.
Mas o meu questionamento é: qual é o grande diferencial para se conseguir um emprego e mantê-lo?
Eu chamaria o principal item desse diferencial de vocação. A palavra vocação vem do latim “vocare” que significa chamado, onde podemos associá-la neste caso com um sentimento interno que cada ser humano tem, direcionado para um talento em especial. Acredito que a grande maioria da população está muito mais preocupada em conseguir dinheiro para saciar suas necessidades e as demandas consumistas, incentivadas por um padrão econômico capitalista, do que em buscar descobrir e realizar seus talentos únicos. Não fomos educados para esta busca.
Em seu livro “As sete leis espirituais do sucesso”, o autor Deepak Chopra conta, que educou seus filhos para que eles buscassem principalmente descobrir qual era(m) o(s) seu(s) talento(s) único(s), pois todos nós temos um ou mais, e que ele os sustentaria enquanto fosse necessário até essa descoberta. E a conclusão foi que eles encontraram seus talentos, são ótimos no que fazem e se sustentam sem necessitar da ajuda dos pais.
Quando descobrimos o nosso talento único, nós damos o melhor de nós mesmos e trabalhamos com prazer e amor. Se nós só trabalhamos para conseguir dinheiro, o trabalho fica vazio de sentido e empobrece nossa vida, tornando-se muitas vezes um peso.
Mas por que essa busca do talento único nem sempre é valorizada? Um dos fatores determinantes é a significativa influência familiar, suas expectativas, e suas valorizações. Se a escola família valoriza um tipo de trabalho ou espera que o filho vá por determinado caminho, ele pode se sentir coagido a trilhar aquele caminho por medo de ser rejeitado ou não ser amado pelas pessoas que lhe são importantes.
Outra influência significativa é o sistema econômico sob o qual vivemos, o capitalismo. Sua preocupação maior é o consumismo, independente de qual fonte ele venha. E com o avanço da tecnologia, existe cada vez mais demanda de consumo para os produtos novos que chegam numa velocidade sem limites.
Dentro de um contexto onde o dinheiro é valorizado e não o talento, as preocupações com o mercado de trabalho são justificadas, e muitas vezes as pessoas assumem uma posição vitimista, culpando a falta de oportunidades de tal mercado. Entretanto, se descobrimos o nosso talento, o problema da inserção no mercado de trabalho deixa de ser um problema, e passa a ser uma construção, onde é fundamental sair da posição de vítima. Quem está numa profissão por vocação, faz todos os esforços possíveis e sacrifícios necessários para crescer. E não desiste quando encontra obstáculos a sua frente, muito pelo contrário, passa a buscar mais alternativas para se capacitarem e ultrapassarem tais obstáculos.
Eu sei disso porque vivenciei todo esse processo profissional, talvez não conscientemente e mais instintivamente. Foi muito difícil pra mim entrar no mercado de trabalho, mas eu nunca desisti, fui me capacitando, melhorando minha formação, aprendendo com as experiências, investindo tempo e dinheiro, com a ajuda da minha família. E quando eu pensei que estava no fundo do poço e não enxergava mais o caminho, enfim as oportunidades foram chegando, eu fui criando raízes e asas, e com o fundamental investimento em terapia, as oportunidades foram melhorando e estão crescendo até hoje. Mas eu sinto que a Psicologia é minha vocação, meu talento. Se eu pudesse fazer algo diferente, eu tentaria fazer mais contatos profissionais e mostrar mais “minha cara”. Naquela época eu era muito insegura, apesar de todos meus esforços. Hoje compreendo o quanto esses contatos são importantes pois são portas e janelas que podem se abrir caso você se mostre, e mostre sua postura profissional e de vida.
Por outro lado, quando não estamos num trabalho por vocação, não temos força o suficiente para investir no mesmo, não temos o desejo de investir porque a execução daquele trabalho não nos é prazerosa, e não crescemos e consequentemente, não melhoramos de vida.
Muitas pessoas também ficam na eterna expectativa ilusória de que a vida vai melhorar, sem que elas tenham que fazer esforço, investimento ou sacrifício nenhum. E isso não é possível. Se queremos crescer, todos esses itens são necessários. Nossas escolhas nos trazem ganhos e perdas e precisamos arcar com todas as suas consequências...
Adriana Freitas

quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

PARENTALIDADE BIOLÓGICA NÃO É DESTINO


Persistentemente nós confundimos a capacidade de ser genitor com a parentalidade. A paternidade em si mesma não é um fato da natureza, mas um fato cultural*. O conceito de família, de infância e de paternidade que temos hoje foi construído culturalmente de longa data. Como nós nem sempre temos acesso ou interesse pela história da humanidade, acabamos por naturalizar e atemporalizar nossos conceitos, acreditando que sempre foi assim, o que também é reforçado por interesses políticos-sociais.
Mas não foi. O conceito de infância, por exemplo, apareceu na pedagogia do Iluminismo dos séculos XVII e XVIII**. E as reformas religiosas e humanistas a partir do século XVI também transformaram o conceito de família. Se anteriormente sua função era a conservação dos bens e a transmissão do nome da família, após a reforma, a família passa a ter uma conotação moral, espiritual, o que implicou numa mudança de sentimentos, afetos e na educação dos filhos. E mudanças ainda mais recentes nos anos 60 e 70, resultantes dos movimentos feministas, do desenvolvimento técnico-científico e da ênfase no projeto do indivíduo em detrimento do grupo social familiar, afirmaram a família fundamentalmente como grupo de afetividade e companheirismo, o que esvaziou mais ainda a parentalidade biológica.
Então, se a parentalidade não é natural dos seres humanos, ser pai e mãe não é algo instintivo, que nasce espontaneamente nos seres humanos. Mesmo que nossa cultura exalte essa idéia, especialmente na figura materna***. Para “adquirir” tal status, é necessário principalmente haver o desejo e a disponibilidade de aprender novas funções e formas de viver. Trata-se de um exercício de servir e amar, o que requer um grande investimento em vários sentidos: emocional-afetivo, de tempo, financeiro, etc.
Infelizmente nós ainda damos muita importância aos laços consanguíneos, mesmo quando as relações não são construídas ao longo do tempo e não há aquele investimento da parte dos pais. O problema é que temos a ilusão de que se uma pessoa “nasceu” para o papel naturalmente ela exercerá a função. O papel é a denominação que damos a cada posição na hierarquia familiar: avô, avó, pai, mãe, filho, filha, neto, neta. A função seria as características atribuídas para cada papel ser exercido da melhor maneira possível.
Dessa forma, vemos que muitas pessoas que possuem um determinado papel, nem sempre exercem a função daquele papel. Por exemplo, um pai que não cresceu emocionalmente pode continuar eternamente na função de filho. Uma filha por sua vez, pode “subir” na hierarquia e exercer uma função parental, cuidando de pais infantizados que não cresceram e até mesmo dos irmãos.
Já me deparei em diversas situações, profissionais e pessoais, onde os indivíduos, crianças ou adultos, ficam correndo atrás de pai e mãe biológicos, sempre com grandes expectativas de que um dia – quem sabe? – eles exerçam a função. Infelizmente essa busca é sempre ou quase sempre frustrante, uma vez que pais infantilizados estão emocionalmente comprometidos e não conseguem assumir todas as responsabilidades que o mundo adulto demanda.
Há também os modelos aprendidos na família. Muitas vezes a parentalidade é precária pois foi assim que se aprendeu a ser pai e mãe com as gerações passadas, ou seja, o próprio conceito de parentalidade é transmitido transgeracionalmente.
Por outro lado, também encontramos pais muito bem intencionados que apesar de buscarem exercer suas funções da melhor maneira que conseguem, “encontram” filhos que têm altas expectativas, e desejam outras atitudes dos pais. Isto é uma idealização construída pelos filhos – assim como também existem idealizações construídas pelos pais em relação aos seus filhos – que perpassa pelo não reconhecimento e aceitação da humanidade dos pais. Estes ficam paralisados na idealização, esperando eternamente que os pais sejam o que eles desejam; são filhos que não crescem.
Sair da paralisação da expectativa é fundamental. Mas por que muitas vezes preferimos ficar com nossas fantasias do que com a realidade? Porque ver a realidade pode ser difícil, doloroso e evidenciar o quanto fomos abandonados ou negligenciados, o quanto nossos pais são falhos. E também porque ao enxergarmos a realidade, necessariamente teremos que sair de posições vitimizadas, parando de culpabilizar o outro pelo que ele não deu conta, e assumir a responsabilidade por suprir nossas necessidades.
A escolha é de cada um...


 * VILLELA, João Baptista. Desbiologização da Paternidade. Revista da Faculdade de Direito da UFMG. BH, ano XXVII, n°21, maio de 1979.
** VALLADARES, Blanca. Revision teorica sobre los mitos da la maternidad. Revista Ciencias Sociales 65: 67-74, septiembre, 1994. Costa Rica 165p.
*** O questionamento da maternidade instintiva é amplamente discutido no livro de Elisabeth Badinter, “Um amor conquistado - o mito do amor materno”. Editora Nova Fronteira.

sábado, 21 de janeiro de 2012

VIDA DE FORMIGAS, VIDA DE HUMANOS


A vida das formigas pode ser uma metáfora interessante se comparada com a vida humana. Podemos observar na vida desses insetos uma variedade de comportamentos semelhantes aos nossos.
Bem, comecemos então nossa analogia. Na hierarquia dessa sociedade complexa, a primeira classe de formigas adultas que é a Formiga Rainha. Esta permanece ovopositando toda sua vida, ou seja, sua função social é apenas a procriação. Em seguida os ovos, as larvas e pupas são cuidadas e alimentadas pelas formigas obreiras.
Em nossa realidade brasileira, muitos telejornais relatam notícias escandalizadas de mulheres que abandonaram seus filhos das mais diversas maneiras. O espanto diante da notícia está relacionado ao como nossa cultura nos apresenta o amor materno como algo instintivo, o que será examinado no livro de Elisabeth Badinter, “Um Amor Conquistado: o Mito do Amor Materno”. A autora apresenta um estudo histórico questionando o amor materno como um instinto e apresentando-o como um Mito construído socialmente. Badinter constata uma variabilidade de sentimentos em relação a função materna, dependendo da cultura, das ambições e das frustrações da mãe. Dessa forma, o amor materno não seria um sentimento inerente a condição da mulher e sim algo construído em sua história pessoal, familiar e cultural.
O questionamento do amor instintivo na parentalidade serve também para os homens, apesar de não haver sobre eles o mesmo mito que há sobre o papel materno.
Outro abandono menos evidente é aquele onde mãe ou pai, mesmo que fiquem com a criança, não têm disponibilidade emocional para serem pais. Muitos deles não deixaram de ser filhos nem assumiram as responsabilidades adultas, consciente ou inconscientemente. Neste sentido, da mesma maneira como a nossa Formiga Rainha, existem mães e pais que são apenas procriadores e nunca serão pais e mães como função, por falta de desejo ou disponibilidade emocional.

Um outro aspecto da vida humana que pode ser comparado com a das formigas, está ligado especialmente a algumas compulsividades que fazem parte dos sintomas mais comuns da contemporaneidade. Por compulsões estou considerando os comportamentos repetitivos adquiridos ao longo do tempo, realizados para aliviar alguma angústia ou ansiedade vivida pelo indivíduo, mas que se tornam mal adaptativos uma vez que o alívio das tensões é apenas imediato. Assim, para obter mais alívio é necessário repetir mais vezes o ato, podendo também gerar culpa por não resistir ao impulso e não conseguir controlá-lo. As compulsões mais comuns são: trabalho, cuidar dos outros, sexo, comida, jogos, álcool e drogas, atividade física, compras, etc.
Um bom exemplo para ilustrar esse aspecto é a segunda classe de formigas adultas, as Formigas Trabalhadoras ou Operárias, as quais se subdividem nas obreiras encarregadas pelos serviços internos da colônia ou nas obreiras responsáveis por buscar o alimento fora do formigueiro (Obreiras Forrageiras). Estas formigas são estéreis e dedicam a vida a cuidar da manutenção do formigueiro.
Na vida humana encontramos pessoas que assumiram apenas o papel de cuidador, como as Formigas Operárias. Suas vidas giram em torno de cuidar do outro, principalmente de suas famílias e as vezes da sociedade, não havendo nenhuma dedicação ao aspecto pessoal, sendo estéreis para seu lado individual.  Todos seus esforços são para agradar, satisfazer e suprir as necessidades alheias. São pessoas que compreenderam de alguma forma na dinâmica familiar de origem que só seriam amadas se exercessem tal papel. Provavelmente quando começaram a cuidar, receberam algum reforço ou reconhecimento por parte dos pais ou figuras de maior importância para elas, e se fixaram nessa função com bastante exclusividade. Essas pessoas esperam muito dos outros uma vez que se doam demasiadamente. Cuidar é a moeda de troca para ser amado em retorno.
Como as Formigas Trabalhadoras vivem para o trabalho, na realidade humana há a compulsão pela mesma atividade. Esta classe de formigas passa toda a vida trabalhando, sua única e exclusiva função na vida. Temos visto muitos homens especialmente, mas hoje muitas mulheres também, que dedicam suas vidas ao trabalho, não apenas de forma vocacional e prazerosa, mas de forma exclusiva. Quando utilizamos o trabalho para fugir ou esconder de ter que sentir ou pensar em nossas relações ou problemas de vida, e ele se torna o único sentido de nossas vidas, está instalada uma compulsão.

A última classe de formigas adultas é a dos Machos, que têm por sua única função inseminar a rainha durante o vôo nupcial e morrem alguns dias depois.
Associei esta última classe, aos homens e mulheres que vivem a compulsão sexual, ou seja, sua vida mental é ocupada por pensamentos e fantasias sexuais que lhe tiram a concentração para a realização de outras atividades, assim como há um impulso para a passagem ao ato de tais fantasias, nem sempre de forma responsável, colocando a vida e a saúde dessas pessoas em risco. A sensação desses indivíduos é de que há alívio apenas quando há cópula, e há morte após a mesma, pois após o ato sexual, o sentimento de vazio também se intensifica, levando-os a buscar mais sexo ou deixando-os mortificados internamente.

Considero tanto a compulsão pelo trabalho, a compulsão por cuidar e a sexual (além das outras que não destaquei aqui) como formas de defesa que o ser humano encontra para mascarar seu sentimento de vazio emocional, suas carências básicas de afeto e amor. Trabalho, cuidado e sexo, também podem ser a única forma encontrada de obter reconhecimento e – quem sabe? – amor de pessoas significativas para o indivíduo.
Infelizmente, o grande problema de todas essas compulsões é quando o indivíduo passa a viver apenas um aspecto da vida, perdendo as múltiplas possibilidades do viver. E o seu grande objetivo acaba falhando, uma vez que o alívio buscado é apenas imediato, gerando um ciclo vicioso que demanda mais atos compulsivos para gerar mais alívio. Consequentemente, há um empobrecimento do seu mundo interno e externo com esta fixação e portanto, a carência que buscava-se suprir não é suprida e o vazio aumenta.

Acredito que algumas das saídas (ou pelo menos algumas das que eu conheço) para as nossas compulsões formigais-humanas estão no investimento em autoconhecimento, no enfrentamento do medo que impede de abolir as fantasias e retirar a viseira dos olhos para enxergarmos nossas reais carências e nossa real história, com todas suas dores, desprazeres, violências e abandonos. Para tal, são necessários vários atos de coragem. Em seguida, de posse da realidade da nossa história, precisamos assumir a TOTAL responsabilidade por suprir nossas necessidades e carências, por cuidar de nós mesmos, com muito carinho e amor.
Dizendo assim parece simples, mas este é um processo que leva tempo e carece do elemento principal que é o constante DESEJO de crescer, juntamente com assumir todas as responsabilidades e consequências que tal processo implica. A ajuda terapêutica na maioria das vezes também é necessária.
Adriana Freitas