Persistentemente nós confundimos a
capacidade de ser genitor com a parentalidade. A paternidade em si mesma não é
um fato da natureza, mas um fato cultural*. O conceito de família, de infância
e de paternidade que temos hoje foi construído culturalmente de longa data.
Como nós nem sempre temos acesso ou interesse pela história da humanidade,
acabamos por naturalizar e atemporalizar nossos conceitos, acreditando que
sempre foi assim, o que também é reforçado por interesses políticos-sociais.
Mas não foi. O conceito de infância,
por exemplo, apareceu na pedagogia do Iluminismo dos séculos XVII e XVIII**. E
as reformas religiosas e humanistas a partir do século XVI também transformaram
o conceito de família. Se anteriormente sua função era a conservação dos bens e
a transmissão do nome da família, após a reforma, a família passa a ter uma
conotação moral, espiritual, o que implicou numa mudança de sentimentos, afetos
e na educação dos filhos. E mudanças ainda mais recentes nos anos 60 e 70,
resultantes dos movimentos feministas, do desenvolvimento técnico-científico e da
ênfase no projeto do indivíduo em detrimento do grupo social familiar, afirmaram
a família fundamentalmente como grupo de afetividade e companheirismo, o que
esvaziou mais ainda a parentalidade biológica.
Então, se a parentalidade não é
natural dos seres humanos, ser pai e mãe não é algo instintivo, que nasce
espontaneamente nos seres humanos. Mesmo que nossa cultura exalte essa idéia,
especialmente na figura materna***. Para “adquirir” tal status, é necessário principalmente
haver o desejo e a disponibilidade de aprender novas funções e formas de viver.
Trata-se de um exercício de servir e amar, o que requer um grande investimento
em vários sentidos: emocional-afetivo, de tempo, financeiro, etc.
Infelizmente nós ainda damos muita
importância aos laços consanguíneos, mesmo quando as relações não são
construídas ao longo do tempo e não há aquele investimento da parte dos pais. O
problema é que temos a ilusão de que se uma pessoa “nasceu” para o papel
naturalmente ela exercerá a função. O papel é a denominação que damos a cada
posição na hierarquia familiar: avô, avó, pai, mãe, filho, filha, neto, neta. A
função seria as características atribuídas para cada papel ser exercido da
melhor maneira possível.
Dessa forma, vemos que muitas pessoas
que possuem um determinado papel, nem sempre exercem a função daquele papel.
Por exemplo, um pai que não cresceu emocionalmente pode continuar eternamente
na função de filho. Uma filha por sua vez, pode “subir” na hierarquia e exercer
uma função parental, cuidando de pais infantizados que não cresceram e até
mesmo dos irmãos.
Já me deparei em diversas situações,
profissionais e pessoais, onde os indivíduos, crianças ou adultos, ficam
correndo atrás de pai e mãe biológicos, sempre com grandes expectativas de que
um dia – quem sabe? – eles exerçam a função. Infelizmente essa busca é sempre
ou quase sempre frustrante, uma vez que pais infantilizados estão
emocionalmente comprometidos e não conseguem assumir todas as responsabilidades
que o mundo adulto demanda.
Há também os modelos aprendidos na
família. Muitas vezes a parentalidade é precária pois foi assim que se aprendeu
a ser pai e mãe com as gerações passadas, ou seja, o próprio conceito de
parentalidade é transmitido transgeracionalmente.
Por outro lado, também encontramos
pais muito bem intencionados que apesar de buscarem exercer suas funções da
melhor maneira que conseguem, “encontram” filhos que têm altas expectativas, e
desejam outras atitudes dos pais. Isto é uma idealização construída pelos
filhos – assim como também existem idealizações construídas pelos pais em
relação aos seus filhos – que perpassa pelo não reconhecimento e aceitação da
humanidade dos pais. Estes ficam paralisados na idealização, esperando
eternamente que os pais sejam o que eles desejam; são filhos que não
crescem.
Sair da paralisação da expectativa é
fundamental. Mas por que muitas vezes preferimos ficar com nossas fantasias do
que com a realidade? Porque ver a realidade pode ser difícil, doloroso e
evidenciar o quanto fomos abandonados ou negligenciados, o quanto nossos pais
são falhos. E também porque ao enxergarmos a realidade, necessariamente teremos
que sair de posições vitimizadas, parando de culpabilizar o outro pelo que ele
não deu conta, e assumir a responsabilidade por suprir nossas necessidades.
A escolha é de cada um...
* VILLELA, João Baptista.
Desbiologização da Paternidade. Revista da Faculdade de Direito da UFMG. BH,
ano XXVII, n°21, maio de 1979.
** VALLADARES, Blanca. Revision teorica sobre los mitos da la
maternidad. Revista Ciencias Sociales 65: 67-74, septiembre, 1994. Costa Rica
165p.
*** O questionamento da maternidade instintiva é amplamente
discutido no livro de Elisabeth Badinter, “Um amor conquistado - o mito do amor
materno”. Editora Nova Fronteira.
Muito bom!! "A vida é o nosso bem mais precioso. Devemos ser gratos aos nossos pais por terem nos dado a vida, mesmo que ela seja a única coisa que os pais puderam dar a um filho. E fazer a nossa própria vida dar certo, ter uma vida boa, é prova de gratidão aos pais." Li isso em algum lugar e achei fantástico! Podemos sentir gratidão ou ingratidão... a escolha é de cada um...
ResponderExcluirBeijão!
Exatamente Gaby! Eu acredito que quando a gente aprende a assumir nossa própria parentalidade, ou seja, ser pai e mãe de nós mesmos, naturalmente sentimos gratidão pelo que nossos pais, na humanidade deles, puderam oferecer, e sentimos principalmente gratidão pela vida e pelas oportunidades que tivemos e temos de aprender mais um pouco a cada dia!
ExcluirMuito grata pela sua contribuição!
Abraço Afetuoso
Ei Natália, ter a oportunidade de conhecer culturas diferentes e comparar as formas de parentalidade de cada uma delas é uma experiência muito rica! Ainda mais viver isso na pele como vc está vivendo. As diferenças podem parecer boas ou ruins dependendo da forma como olhamos ou da nossa expectativa.
ResponderExcluirMuito obrigada pelos comentários!
Grande abraço!
Oi, Adriana. Que saudade. Vc está linda nas fotos. Espero que esteja bem. Como é bom ler textos como estes que me faz relembrar tudo que aprendi com vc na Sistêmica. Obrigada. Bj no coração
ResponderExcluirObrigada pelos comentários Renata! Grande abraço!
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